Diálogo Musical entre os Senhores José Francisco Monteiro Baptista (ZK) e Manuel da Conceição Dias Fernandes (NF).
Depois de alguma reflexão, na procura de uma tradução o mais fiel possível para o português, do diálogo, em crioulo, protagonizado pelos senhores José Francisco Monteiro Baptista “ ZÉ Kubala” e Manuel da Conceição Dias Fernandes “Ney Fernandes” e, sobretudo, por se revelar de algum interesse, com o consentimento de ambos, publica-se o presente diálogo, pedindo aos músicos, de uma forma geral, desculpas por eventuais desacertos que advêm da inexactidão de alguns termos em crioulo, que traduzidos para o português ficam meio esvaziados.
Assim, teremos o Sr. José Francisco Monteiro Baptista “ ZÉ Kubala” e Manuel da Conceição Dias Fernandes “Ney Fernandes”, ao longo deste diálogo, designados por “ZK” e “NF”, respectivamente.
ZK - Nestes últimos tempos, a música cabo-verdiana, tem estado no cimo, sobretudo, nos meios de comunicação social, proporcionando debates apaixonantes.
NF - É verdade, reconhecemos o esforço dos profissionais da comunicação social que têm estado à frente dessas entrevistas, mas deve concordar connosco de que é notável alguma ligeireza e, até certo ponto, falta de preparação, no trato da música.
ZK - (Riso) Também há de concordar connosco que não é tarefa fácil falar do fenómeno único que é o da reacção humana, perante sons devidamente organizados.
NF - Concordamos, plenamente, mas se se quiser uma abordagem da música enquanto ciência, deve-se no mínimo dominar alguns conceitos musicais. Os profissionais da rádio e da televisão, os entrevistadores, de uma forma geral, terão de aumentar a sua percepção relativamente à matéria musical. Terão de ser mais sensíveis à música no seu plano puramente musical para que se eleve a cultura musical do grande público ouvinte e não só.
ZK - NF, se referiu à música enquanto ciência e sabe que uma abordagem nesse plano só traz ruídos na comunicação com o grande público. No domínio da aprendizagem da música faz todo sentido conhecer as teorias musicais, todo o material envolvente, para que o produto final – as composições – sejam bem recebidas, mas teremos de poupar o grande público que, na maioria das vezes, quer um produto de qualidade e mais não lhe importa.
NF – Achamos não termos sido suficientemente claros!!! Não estamos a pedir aos profissionais da comunicação social, nem ao grande público o conhecimento da música. No entanto é desejável uma cultura musical básica, para que ela a música possa ser tratada e ouvida conscientemente. E já agora, uma das fundamentações: O nosso conceito musical extravasa a fronteira clássica da definição que algumas literaturas suscitam. Exemplificando, nós conseguimos, pela nossa sensibilidade musical, descortinar extractos de musicalidade nos choros das pessoas, no cantar dos pássaros, no quebrar e vaivém, das ondas do mar, no cair das chuvas etc, etc. A nosso ver o universo tem nas suas entranhas a música. Olha, ao referirmos a extractos de musicalidade nos choros das pessoas, podemos , até, ser apelidados de masoquista. Contudo, os factos por si só falam: Cá na ilha de Santiago, e bem no interior , quando morre alguém, assiste-se a um autêntico “concurso” de choro e, não raras vezes, ouvimos comentários em como a fulano (a) chora bem “Ta Txora Sabi” ou então de que o beltrano(a) não sabe chorar “Ta Txora Mariadu”. Esses comentários não serão, por certo, indicadores do índice da mágoa, mas sim o efeito estético-emocional que esses choros, recheados de “melodia”, nos tocam o fundo da alma.
A nossa sensação é que a música está no ar, respiramos a música, o mundo está cheio dela e cabe a cada um, segundo o recurso que tem, pegá-la aqui ou acolá.
ZK – Estás teorizando em demasia !!! Olha NF, não é do nosso feitio abordar a questão da música de uma forma sempre simplista e pelas conversas que temos tido, sabe muito bem disso. O problema que se nos coloca é até onde podemos elevar o nível de uma explicação sem perdermos o contacto com as pessoas, sem uma preparação de base. Até porque, um simples deleitante quando escuta as “notas” o que mais lhe impressiona é a melodia. Esta ou é ou não bonita. Depois, provavelmente, o ritmo, sobretudo, se possuir um ar dançável. É dentro dessas balizas que nós, os músicos, teremos de trabalhar todo o material musical, enquanto profissionais da música, para apresentarmos um produto acabado e interessante.
NF – Concordamos, em parte, com a sua observação, mas entendemos que se alguns compositores permanecessem a trabalhar a música nos moldes dos anos setenta, a música cabo-verdiana não teria dado pulo que deu ultimamente. É notável o recurso a outras técnicas, mais nuances melódicos, utilização de escalas de uma forma mais consciente, acordes bem mais ousados, influindo a nível dos harmónicos, modulação e, sobretudo, o timbre já que se conta com recursos nunca dantes disponíveis no universo acústico-musical, etc.etc.
ZK – Em diferentes fases da nossa vivência, enquanto povo, a nossa música foi tomando forma ao longo do tempo. Disto não temos dúvidas e há de reconhecer que nós somos músico. Tínhamos composições - já agora tenho de teorizar – todas elas à volta da Tónica, Dominante e Sub-dominante com modulações pobres quase sempre dirigidas às relativas menores, etc. Nós não hesitaríamos em ordenar o desenvolvimento da música cabo-verdiana, com a sequencia em baixo:
· A primeira morna “Crus di Nhu Fetor” , surgida na Ilha de Boavista -(Cabo-Verde), produzida por um santiaguense, que para ali foi transferido em serviço;
· As figuras do Eugénio Tavares e B Leza;
· O grande contributo do então Voz de Cabo Verde, do saudoso Luís Morais;
· A sequencia imprimida pelos Tubarões (do Chindo, Luís Lobo e, posteriormente, Ildo Lobo);
· O aparecimento do Bulimundo e estilização do Funaná, com o Katxás;
· O contributo incomensurável dado pelos irmãos Zeca e Zezé de Nha Reinalda;
· A Consagração da Cesária Évora no além fronteira;
· O trabalho meritório dos Mendes Brothers;
· O grupo Simentera pela sua forma ímpar e personalizada no tratamento das músicas tradicionais;
· O Ferru Gaita pela sua ousadia e oportunidade musicais; e
· Outros tantos que a história musical cabo-verdiana reterá.
NF - Nesses outros tantos que a história musical cabo-verdiana reterá, que nos seja permitido destacar o Pantera - já falecido -, o Txeka, o Djinhu Barbosa, o Maruka, o Princezito que marcam até certo ponto, uma ruptura com as técnicas composicionais, sobretudo, a estrutura musical até então mantida.
ZK – Já íamos esquecer, já íamos esquecer!!! Neste particular, o Pantera é e será um nome sonante no panorama musical cabo-verdiano. Desenvencilhou-se da estrutura musical até então mantida - como bem disse - mas também assistiu-se o recurso a acordes e escalas que acabaram por ditar linhas melódicas muito interessantes.
NF – (Riso) Nós disséramos, a propósito dos acordes, durante uma entrevista ,no ano de 1981, que já era altura de consciencializarmos e que da família dos acordes maiores e menores perfeitos, faziam parte as notas seguintes: C(dó), C6, C6/9, C7+, C7+/5+, C7+/5-, C7+/9, C7+/6/9 e o Cadd9 ou, então, relativamente ao acorde menor, o Cm (dó menor), Cm6, Cm6/9, Cm7, Cm7/5+, Cm7/5-, Cm7+, Cm9, Cm9/5+, Cm9/5-, Cm11, Cm11/5+ e Cm11/5-. Quisemos exemplificar, partindo do C (Dó), mas o princípio é válido para as outras notas. Preterimos os acordes de sétima que são mais vastos e de importância capital dentro da música. Estranho, é que com relação a esses acordes, existe uma aversão quase generalizada, sendo chamados de dissonantes.
ZK - Pois são!!!
NF - ZK, permita-nos discordar para afiançarmos que não são dissonantes. A dissonância, busca-se, propositadamente, no decorrer de uma composição para se criar um estado de tensão, de contraste, de vida, de movimento, de ruptura. Olha a própria vida que levamos , sem esses elementos, é monótona e descolorida.
Mas, mais: Sabemos que a progressão musical melódica tem por base as terças. È ou não é verdade? Por exemplo: Temos o C, E, G, B, D, F, A. Substitídos por algarismos, temos 1, 3, 5, 7, 9, 11, e 13. Se assim for, temos o C , C7, C9, C11 e C13 de uma forma natural. Depois é só florirmos aumentando ou diminuindo as notas para termos outros acordes.
Já agora, uma outra coisa: Noutro dia quando falávamos da música, aí nos arredores da Sucupira, afirmou que de entre outras medidas para fazer avançar e desenvolver a nossa música, dever-se-ía ensinar a música ao bebé. Nós estivemos a pensar sobre essa sua pretensão e concluímos achá-la absurda.
ZK – (Riso) …
NF – Sim, um absurdo !!!
ZK – (Riso)… não entendeu o que dissemos: Nós falámos em despertar no indivíduo , enquanto bebé, a sua aptidão nata pela música. Isso não escandaliza ninguém. Não estaremos a conceber o ensino da música nessa fase, em que o indivíduo vai ter de conhecer as notas; vai ter de conhecer as escalas; vai ter de conhecer os acordes; vai ter de conhecer uma mínima, semínima, colcheia, semi-colcheia, breve, etc, etc. Preconizamos um ambiente musical propício e um estímulo na justa medida. Por exemplo: Os pais devem ser cautelosos na escolha de brinquedos imitativos de instrumentos musicais, porque estes podem estar desafinados e a criança habituar os ouvidos a notas desafinadas. O nosso cancioneiro infantil deve, respeitando a idade da criança, primar pela qualidade da música relativamente às letras, melodia e todo o arranjo subjacente.
ZK – Não te rias!!! Deixa-nos terminar o nosso raciocínio: Nós acreditamos que o indivíduo nasce com aptidão pela música. De certeza, que já presenciou bebés cantarolando os seus bá-bá-bá ou, então, que tenhas cantado para o bebé uma determinada canção, vendo-se a sorrir.
Repare que um indivíduo que, comprovadamente, tenha nascido sem problemas de visão e lhe taparmos um dos olhos à nascença, ao fim de alguns meses vai deixar de ver com o olho que lhe fora tapado , porque não pôde receber os estímulos que tinham por fim, fazer accionar uma aptidão nata que é a visão. O mesmo se aplica a música pelo que deve ser estimulada.
NF – Estamos esclarecidos… o senhor propõe uma aprendizagem, ou melhor, um ambiente musical, faseados no tempo.
ZK- Viu que não tinha nada de absurdo!!!
ZK- Também, nesse dia, nos arredores da Sucupira, falámos de compositores da música. O NF considera-se compositor ou simplesmente um trovador, dotado de ouvido musical, mercê das inspirações espontâneas ?
NF- Já formulámos esta pergunta a nós mesmo e confessamos que nos consideramos um pouco de tudo.
ZK - Como assim? (riso)
NF - Bu sta na Txakota!!! (Estás a gozar…!!!)
ZK – Não, responda!!! Sim ou Não…
NF- A pergunta não deve ser posta nestes termos, até porque não somos redutor e sê-lo é sinal de fraca inteligência. O senhor é músico, formado num país altamente desenvolvido em matéria musical – República Socialista de Cuba – e entendemos que a sua pergunta tem algo de ironia, até porque em outras situações já nos considerou compositor. Mas vamos à sua inquietação, começando pelo final da sua pergunta. Se referiu, a … como quê mesmo? – inspirações espontâneas, não é?
Olha, ZK, para o compositor, a nosso ver, a questão de inspiração não se põe. O trabalho do compositor é uma função natural que advém do seu metier .
Se essa inspiração possa ser entendida como estado de espírito para compor, aí sim, quase sempre temos tempo e lançámo-nos ao trabalho para ter um resultado final que satisfaça os ouvintes, surgindo a inspiração como um subproduto, mas nunca como um elemento de força na composição.
Ao iniciarmos o processo criador, arrumamos o material musical para só depois surgir a música propriamente dita, isto é, aquela fase em que ela a música está pronta para ser executada e ouvida. Temos uma letra a musicar , uma melodia a ser poetizada ou simplesmente um vazio musical. Vamo-nos centrar neste último aspecto – vazio musical – uma vez que acaba englobando as outras duas situações.
Exemplificando:
Escolhemos a tonalidade que queremos para a música (maior ou menor);
Decompomos a escala tendo em atenção os intervalos, estabelecendo-se os acidentes bemóis ou sustenidos;
Exploramos a escala melódica;
Exploramos a escala harmónica;
Estabelecemos os primeiros acordes;
Fazemos as substituições destes últimos, lá onde for possível, tendo em conta os diferentes graus.
Rearranjamos a melodia em consonância com os acordes e seus harmónicos subjacentes.
Ajustamos as sílabas métricas da poesia musicada.
Exploramos outros recursos musicais (arranjo) que não vamos agora detalhar.
Colocamo-nos no lugar de ouvinte;
Fazemos novas correcções; e
Damos por finda a composição, depois de devidamente anotada numa pauta de música.
ZK - Continue que está num bom caminho!
NF - Obrigado, meu professor!
ZK - Deixe de ironia.
NF - Ironia nenhuma!!!foi você que me deu umas dicas e ainda me orientou em como proceder com autodidacta em matéria musical. Mais uma vez, obrigado.
ZK – De nada!!!
Risos…